A decisão atende a pedido da psicóloga Rozangela Alves Justino em processo aberto contra o Conselho Federal de Psicologia, que aplicou uma censura à profissional por oferecer a terapia aos seus pacientes
Em decisão liminar, o juiz Waldemar Claudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal de Brasília afirmou a validade da Resolução n.º 01/1999, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que proíbe a consideração da homossexualidade como doença, desvio psicológico, perversão e, em suma, de qualquer forma que patologize a orientação sexual direcionada a pessoas do mesmo gênero, desde que o CFP a interprete de forma a não proibir “terapias” (sic) que visem a “reorientação sexual” [de homossexuais e bissexuais egodistônicos, obviamente, já que heterossexuais isso não buscam]. Em suas palavras, impôs ao CFP que não interprete a Resolução 01/1999 “de modo a impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento de (re)orientação sexual” (sic), supostamente como decorrência da “liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia do C.F.P”.
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Ou seja, atribuiu à Resolução uma interpretação conforme a Constituição, para considerá-la constitucional desde que interpretada como não proibindo o tratamento da homossexualidade e da bissexualidade egodistônicos, e no específico sentido de [supostamente] não proibir as chamadas “terapias” de “reorientação sexual” (sic), para que a pessoa que se identifique como homossexual ou bissexual possa ser “tratada” (sic) para se tornar heterossexual. Embora a decisão liminar não fale em termos tão peremptórios sobre “cura gay” (sic), essa é a consequência prática de sua determinação. Ação esta movida, entre outros, por Rozangela Justino, a qual sofreu pena de censura pelo CFP, precisamente por propagar a suposta possibilidade de se mudar a orientação sexual das pessoas, por “terapia” psicológica[1].
Como visto, embora divulgada, por vezes, como uma decisão que manteve a validade da Resolução CFP 01/1999, na prática referida decisão liminar praticamente torna a resolução verdadeira letra morta. Ora, referida resolução foi aprovada poucos anos depois da despatologização da homossexualidade e da bissexualidade pela Organização Mundial de Saúde, a qual, desde a Classificação Internacional de Doenças (CID) n.º 10, de 1990, afirma que “a orientação sexual por si não deve ser vista como um transtorno”. O intuito da Resolução, desde sempre, foi proibir psicólogos de patologizarem orientações sexuais distintas da heterossexualidade (logo, homossexualidade, bissexualidade[2] e assexualidade).
Nesse sentido, apesar da decisão, ao enunciar suas premissas, afirmar que “a homossexualidade constitui uma variação natural da sexualidade humana, não podendo ser, portanto, considerada como condição patológica” e que o Projeto de Lei 4.931/2016 merece críticas, ao aparentemente buscar equiparar a homossexualidade a um transtorno da sexualidade, entra em contradição o Juízo ao admitir que não se poderia proibir psicólogos(as) de realizar atendimento relacionado à reorientação sexual[3] das pessoas não-heterossexuais. Isso porque tal postura simplesmente patologiza as orientações sexuais que se quer permitir a “reorientação sexual” (sic). Do contrário, por que razão se admitiria que um(a) psicólogo(a) poderia fornecer terapia voltada à “reorientação sexual” da pessoa homo ou bissexual?
Nem se argumente que a OMS considerar a chamada “orientação sexual egodistônica” uma doença permitiria tal compreensão esposada pelo Juízo da 14ª Vara Federal do Distrito Federal. A egodistonia é considerada uma patologia por força do sofrimento subjetivo que essa ausência de sintonia entre a orientação sexual “real” da pessoa (tal qual ela a sente, independente de vontade) e a orientação sexual “desejada” pela pessoa, ou seja, aquela que ela gostaria de ter. Ora, a pessoa tem sofrimento subjetivo não por conta de sua orientação sexual (homoafetiva ou biafetiva), mas em razão do preconceito social homofóbico/bifóbico que sofre em razão de sua orientação sexual.
Como costumo sempre dizer, a egodistonia se cura com a egosintonia, e essa é a correta posição do CFP. Ora, considerando que a homossexualidade e a bissexualidade não são doenças, desvios psicológicos, perversões sexuais nem nada do gênero, não podem ser objeto de “cura”. Não se cura aquilo que não é doença, logo, não se pode permitir “tratamento psicológico” que vise “reorientação sexual” se “a orientação sexual por si não pode ser vista como um transtorno” (cf. OMS).
A pretensão de permitir a “reorientação sexual” (sic) via terapia psicológica é tão absurda quanto pretender admitir terapia psicológica de “reorientação” para canhotos se tornarem destros. O exemplo só é inusitado para quem é jovem e não tem conhecimento histórico: as demonizações sociais a canhotos são fatos notórios na História e pretendia-se impor que escrevessem com a mão direita, mesmo isso não lhes sendo natural/espontâneo. Palmatórias eram usadas para tal fim nas escolas. Para se concordar com tal decisão, por coerência, é preciso, igualmente, considerar igualmente “válido” que um “canhoto egodistônico”, que queira ser destro, possa vir a receber tratamento psicológico com a finalidade de se tornar destro, o que seria um absurdo…Será que Rozangela Justino, demais integrantes do polo ativo de tal ação e o juiz que proferiu tal decisão esposariam tal entendimento?
A posição do Conselho Federal de Psicologia sempre foi clara contra as infundadas acusações de que estaria querendo “proibir” psicólogos de atenderem pacientes homossexuais e bissexuais que procuram auxílio psicológico. Ele sempre explicou que não há proibição a profissional da Psicologia de atender pacientes homo e bissexuais – a proibição se refere à patologização das orientações sexuais não-heterossexuais. Ou seja, acrescento, considerando que homossexualidade e bissexualidade não são doenças, o psicólogo deve entender a razão do sofrimento da pessoa homossexual ou bissexual e ajudá-la a aceitar sua verdadeira orientação sexual, e não pretender mudá-la.
Lembre-se, ainda, que muitos estudos já foram feitos sobre tanto a ineficácia dessas pseudo “terapias”, por não atingirem o fim desejado, de “mudança de orientação sexual” (sic), quanto seus efeitos perniciosos sobre as vítimas (“pacientes”) homossexuais e bissexuais, causando-lhes traumas e depressões (cf. infra). Não há “ex-gay” (sic), há pessoa que reprime sua verdadeira orientação sexual, por pressão social (familiar, religiosa etc) – como demonstra o fenômeno do “ex-ex-gay”, ou seja, aquele que é homossexual, dizia-se “ex-gay”, mas teve uma “recaída”, depois outra, depois outra… até se conscientizar de que sua orientação sexual homoafetiva (ou biafetiva) não é passível de mudança. Mas todo esse processo só serve para aumentar os traumas e depressões sofridos pela vítima homossexual ou bissexual; sofrimento este que lhe vitimiza em razão do preconceito social homofóbico e bifóbico.
Nesse sentido, vide manifestação da Associação Americana de Psicologia(íntegra do estudo aqui):
Em um relatório baseado em dois anos de pesquisas, os 150 profissionais afiliados manifestaram firme oposição à chamada “terapia reparadora”, que busca a mudança de orientação sexual. O texto afirma que não há evidência sólida de que essa mudança seja possível. Alguns estudos, o relatório ressalta, sugerem até mesmo que esse tipo de esforço pode induzir à depressão e a tendências suicidas. “Quem atende deve ajudar seus pacientes por meio de terapias (…) que envolvam aceitação, apoio e exploração de identidade, sem imposição de uma identidade específica”, diz o documento. A APA já havia criticado as terapia de mudança de orientação sexual no passado, mas uma força-tarefa de seis membros da entidade, liderada por Judith Glassgold, de New Jersey, conferiu mais peso a essa posição, analisando 83 estudos sobre orientação sexual conduzidos desde 1960. As conclusões desse comitê revisor foram endossadas oficialmente pela direção da entidade. O relatório trata com detalhes a questão de como terapeutas devem lidar com pacientes gays que lutam para permanecer fiéis a crenças religiosas que desaprovem a homossexualidade. Segundo Judith, a esperança é de que o documento ajude a desarmar o debate polarizado entre religiosos conservadores que creem na possibilidade de mudar a orientação sexual e os muitos profissionais da área de saúde mental que rejeitam essa opção. “Os dois lados precisam se educar melhor”, disse a especialista. “Os psicoterapeutas religiosos precisam abrir seus olhos para os potenciais aspectos positivos de ser gay ou lésbica. Terapeutas não religiosos precisam reconhecer que algumas pessoas podem dar preferência a sua religião, em detrimento de sua sexualidade.”[5] (grifos nossos)
Ainda sobre a ineficácia dessas pseudo “terapias”, lembre-se que em 2013 o grupo “Exodus”, que visava a “cura gay”, fechou as portas pedindo desculpas às suas vítimas pelos danos psicológicos que lhes causaram com a promessa de “reorientação sexual” (para usar expressão deste processo, ora criticado). Dano psicológico decorrente de “anos de sofrimento indevido e julgamento nas mãos da organização e da igreja como um todo”, destacou, na época, a entidade.
Anote-se, por oportuno, que em sentido diverso já decidiu a Justiça Federal carioca e o Egrégio Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Com efeito, na ação civil pública n.º 18794-17.2011.4.02.5101, decidiu o E. TRF/2 que:
Não se trata, pelo que se pode perceber, de imposição de restrição em desconformidade com os ditames da mencionada Lei nº 5.766/71, mas apenas de um balizamento de atuação profissional, de tal forma a que seja vedada a promoção de quaisquer tipos de ações que impliquem, direta ou indiretamente, o reforço de uma pecha culturalmente sedimentada na sociedade no sentido de que a homossexualidade consiste em doença, distúrbio, transtorno ou perversão. Cabe ao psicólogo, e isso a Resolução lhe assegura, atender o indivíduo que a ele se dirige, seja ele homossexual ou não. Contudo, propalar a realização de tratamento e cura da homossexualidade contribui com a patologização da orientação sexual do indivíduo, o que não se coaduna até mesmo com o teor da nota constante na CID-10 F.66, segundo a qual “A orientação sexual por si não deve ser vista como um transtorno”. Ora, se a comunidade científica internacional já concluiu que a homossexualidade não é uma doença, o que culminou, em 1990, na modificação da Tabela CID pela Organização Mundial de Saúde, com a exclusão da homossexualidade do rol de patologias ali indicadas, cabe indagar em que medida poderíamos reputar como ilegal ou inconstitucional uma Resolução que, em seu art. 3º, caput, harmonizando-se com os estudos científicos que culminaram no entendimento antes mencionado, determina que profissionais de psicologia não exerçam ações que possam favorecer a “patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas…”, ou ainda, que adotem ações coercitivas tendentes “…a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”? Sob esta perspectiva, a irresignação não se sustenta. Impende registrar que o espaço terapêutico é, primordialmente, um lugar destinado à escuta e ao acolhimento do sujeito em sofrimento, que, via de regra, diante da impossibilidade de solucionar, de per si, seus dilemas existenciais, busca o auxílio de um profissional da área de psicologia para alcançar o que podemos denominar de bem estar psíquico. Diferentemente da realidade proposta pelos diversos autores de manuais de autoajuda, que, de forma costumeira, prometem, indistintamente, soluções rápidas e infalíveis para a “cura” das angústias dos consumidores desta literatura, têm os processos terapêuticos, antes de tudo, um modo singular de abordagem e trato do sujeito, permitindo que este, através da fala, e com a indispensável participação do Psicólogo como interlocutor, reorganize seus pensamentos, identifique com razoável clareza os seus problemas, reflita sobre os mesmos, perceba os fatores efetivamente causadores de suas angústias e sofrimentos e, assim, seja capaz de elaborar estratégias para uma vida melhor. Visto também sob este prisma, evidenciam-se a justeza, a adequação e a razoabilidade do ato normativo vergastado, pois, ao que se infere dos autos, preconiza o Conselho Federal de Psicologia que, por razões técnicas e éticas, cabe ao Psicólogo, com seu mister, fortalecer o entendimento de que todos são livres para viver sua sexualidade, e não propor, a priori, o que se convencionou chamar de “cura gay”, contribuindo com a manutenção de preconceitos e estigmas seculares contra pessoas em razão apenas da sua orientação sexual.[6] (grifo nosso)
Nessa decisão, aliás, cita-se a posição da então Presidente do CFP, Dra. Ana Maria Pereira Lopes, que ratifica o supra exposto, sobre a egodistonia se curar com a egosintonia, razão pela qual a longa transcrição[7]:
2. Como a palavra sugere, egodistônico é o sentimento de não estar em sintonia consigo mesmo. Entretanto, os motivos para esta ‘distonia’ podem ser múltiplos e seria muito redutor atribuí-lo somente à sexualidade. O que a clínica nos informa é que, muitas vezes, o homossexual sofre de ‘distonia’ por problemas de pertença social e moral junto às outras pessoas, próximas ou distantes, mas sobretudo junto a si mesmo. Como sabemos, os valores sociais fazem parte das identificações constitutivas do Ego. Dentre estas identificações, a chamada ‘orientação heterossexual’ é altamente valorizada (FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. 6ª ed.). Toda outra forma é vista como algo ‘sócio-distônico’. Muitas vezes, o sujeito homossexual sofre devido à introjeção desta homofobia social, pois desde muito cedo ele aprende que sua orientação sexual é ‘sócio-distônica’. E é aí que procura ajuda. Ou seja, o sofrimento psíquico do homossexual vem da internalização da desvalorização social-moral: é pelo preconceito, e não por transtorno, disfunção ou pela homossexualidade em si, que o indivíduo homossexual sofre. Assim, do ponto de vista ético, o que deve estar em foco são os mecanismos de sofrimento do sujeito, para que ele possa identificar suas origens e combatê-lo.
3. Cabe, pois, ao psicólogo escutar e ‘tratar’ sujeitos com sofrimentos das mais diversas ordens que buscam estabelecer uma relação em sintonia consigo próprio, qualquer que seja a sua orientação sexual. Ou seja, o sujeito procura ajuda para mudar, para parar de sofrer. Em certos sujeitos homossexuais, a homofobia é de tal forma introjetada, que a vida fica insuportável, o que o leva a fazer qualquer coisa para mudar. A mais comum talvez seja adaptar-se aos valores do imaginário ocidental: casar-se e ter filhos, o que pode diminuir temporariamente o sofrimento, mas não resolve a questão.
4. Não cabe aos psicólogos a criação de ‘grupos de apoio’ para os que querem ‘deixar’ a homossexualidade, sob pena de aumentar ainda mais o preconceito manifesto, sem acabar com o sofrimento psíquico. Independentemente de sua linha de trabalho, o psicoterapeuta deve saber que valorizações negativas comprometem todo o processo terapêutico. Seja como for, e em qualquer linha teórico-clínica, a orientação sexual não implica nem em ‘disfunções’, nem em ‘transtornos’, logo, não há o que curar. Evidentemente, pode-se fazer uma discussão religiosa da questão, mas isto só pode ocorrer dentro de um debate religioso. Utilizar a religião para caucionar o debate científico é tão absurdo como, por exemplo, pedir ao padre, ao pastor, ao monge, explicações científicas para a fé! O processo psicoterapêutico, por definição, é isento de bases morais.
5. O psicólogo irá tratar de qualquer pessoa que o procure com orientação egodistônica, mas neste caso não irá apreciar a homossexualidade como patológica, assim como a heterossexualidade e a bissexualidade, segundo capítulo F66 da CID 10. Pois a orientação egodistônica, que se dá em função de transtornos psicológicos e comportamentais associados à orientação sexual, é fruto de uma sociedade que em sua história de formação aprendeu a reprimir, oprimir e coagir. A psicologia entende que a sexualidade pode se apresentar de diversas formas, e deve-se considerar os fatores sócio-históricos que a condicionam.
6. O discurso da condição de cura, tal como preconizado pelo CID 10, é altamente discutível. Na maioria das vezes, observa-se coerção e imposição social que vai contra os princípios da livre expressão de várias outras formas de se viver a sexualidade humana, o que, em função da comparação, coloca os grupos que nela não se enquadram em categoria de inferioridade, quando na realidade não o são.
7. O exercício da Resolução nº CFP 001/1999, como várias cartas e declarações pelos direitos humanos, visa qualificar o trabalho profissional do psicólogo propiciando a inclusão de cidadãs e cidadãos homossexuais um atendimento psicológico sem vitimização ou preconceito. Cumpre salientar que o Código de Ética do psicólogo, no seu segundo princípio fundamental, defende a ‘eliminação de todas as formas de discriminação e violência’.
8. Por esta e outras razões expressas em documento anterior, como na própria resolução,atentamos para a proibição de reforçar ao paciente que a homossexualidade seria algo ruim ou mesmo doença, e que necessária de cura ou reversão, até mesmo porque toda a diversidade sexual humana deve ser considerada como expressão legítima dos sujeitos. A exclusão da diversidade sexual se dá por processos de higienização sócio-histórica, cultural e religiosa, na tendência de marginalizar os que estão fora dos padrões constituídos.
9. Conclusão: o psicólogo deve acolher o sujeito em sofrimento psíquico na sua demanda de ajuda, seja ela proveniente de sua orientação sexual egodistônica, ou outra qualquer. O que não significa que a mudança de orientação sexual seja o foco do trabalho. Deverá o psicólogo ter como princípio o respeito à livre orientação sexual dos indivíduos e apoiar a elaboração de formas de enfrentamento no lidar com as realidades sociais de maneira integrada. Isso porque a questão da orientação sexual, como expressão do direito humano, distancia-se radicalmente de conceitos de cura e doença. O objetivo terapêutico não será a reversão da homossexualidade porque isso não é uma demanda passível de tratamento, já que não se configura como distúrbio uo transtorno. O projeto terapêutico proposto estará direcionado para a felicidade e o bem-estar daqueles que nos procuram.
Em suma, a decisão que impôs ao Conselho Federal de Psicologia que não proíba “terapias” de “reorientação sexual” violou tanto o aspecto científico da questão (não se pode possibilitar a “cura” daquilo que não é “doença” e essa é a consequência lógica da permissão de “reorientação sexual” de homossexuais e bissexuais), bem como, ainda que sem intenção, possibilitou a ação de grupos fundamentalistas de promoverem o preconceito homofóbico e bifóbico, através do heterossexismo social, a saber, a ideologia que prega a heterossexualidade como única orientação sexual “digna” (ou a “mais digna”) de ser vivida.
Tal decisão nos remete à Idade Média, à era pré-iluminista, por ignorar por completo a Razão enquanto paradigma de razoabilidade. Decisão de efeitos discriminatórios que, à toda evidência, viola o art. 3º, I e IV, da CF/88, demanda a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e proíbe preconceitos e discriminações de quaisquer espécies (legitimados por essa decisão, não obstante, reitere-se, não se imaginar ter sido esta a intenção do magistrado prolator – mas os efeitos discriminatórios são tão inconstitucionais quanto a discriminação intencional, como conhecimentos mínimos de Direito Antidiscriminatório demonstram). Fico na expectativa de recurso do CFP contra dita decisão e sua pronta reforma pelo Egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Paulo Iotti é Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru (ITE). Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Membro do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Advogado e Professor Universitário.
[2] Parte do Movimento Social diferencia bissexualidade, enquanto atração afetivo-sexual indistinta apenas aos dois gêneros tradicionais (masculino e feminino), e pansexualidade, enquanto atração afetivo-sexual indistinta por pessoas de quaisquer gêneros e identidades de gêneros. Não concordamos com essa visão limitante da bissexualidade, mas, a se acolher essa perspectiva, então, obviamente, a pansexualidade encontra-se despatologizada pela OMS e pela Resolução CFP 01/1999.
[3] Trata-se do óbvio sentido à expressão, constante da decisão, que afirma que “Apenas alguns dispositivos, quando e se mal interpretados [ic], podem levar à equivocada hermenêutica no sentido de se considerar vedado ao psicólogo realizr qualquer estudo ou atendimento relacionados à orientação ou reorientação sexual. Digo isso porque a Constituição, por meio dos já citados princípios constitucionais, garante a liberdade científica bem como a plena realização da dignidade da pessoa humana, inclusive sob o aspecto de sua sexualidade, valores esses que não podem ser desrespeitados por um ato normativo infraconstitucional, no caso, uma resolução editada pelo C.F.P” (grifo nosso).
[4] Discute a OMS atualmente a despatologização das identidades trans. Apoio tal medida. Trata-se de uma questão identitária, não uma patologia, consoante a doutrina da socióloga Berenice Bento. Ao passo que, considerando que a saúde não se limita à ausência de patologias, mas ao completo estado de bem-estar biológico, psicológico e social (cf. OMS), o bem-estar psicológico e social das pessoas trans continuará demandando seu atendimento pelo SUS, para fins de tratamento hormonal e cirúrgico visando a cirurgia de transgenitalização, ou somente tratamento hormonal, para aquelas e aqueles que não desejem a cirurgia (tema a ser desenvolvido em outro artigo).
Em parceria com a rede social Honet lançou uma petição requerendo a revogação da decisão imediatamente.
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